[Recorte] Enquanto os dentes, de Carlos Eduardo Pereira


[Recorte]  Enquanto os dentes, de Carlos Eduardo Pereira. Editora: Todavia. Ano: 2017. Páginas: 96.   


Estamos indo sempre pra casa, enquanto os dentes mordem o mundo para aguentar


“Estamos indo sempre pra casa” é uma frase chave da obra Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, mas que pode ser referida ao romance Enquanto os dentes, texto de estréia do carioca Carlos Eduardo Pereira. O romance é um clássico retorno às raízes familiares e à infância que deixam tantas marcas na construção histórica de cada sujeito. Até esse ponto, não há muita novidade, pois muitas obras na história da literatura mundial apresentam o mesmo recurso na base da construção do enredo. No entanto, o que é marcante no projeto literário de Carlos Eduardo Pereira, e que nos faz também rememorar grandes obras da literatura brasileira, como o caso de Raduan Nassar e tantos outros escritores que poderiam ser citados aqui, é o minucioso trabalho de observação do mundo e um trato textual revigorado e bem arquitetado.

Em Enquanto os dentes, diferente das narrativas de retorno consumado aos espaços da casa e do encontro com objetos ancorados num sentimentalismo nostálgico, o que se propõe na obra é um retorno à casa e à família bem antes mesmo da chegada. Nisso, o recurso da memória e desse resgate a um passado, na verdade, não é nada mais do que a própria reflexão sobre a constituição da personagem no presente. Na esteira de obras como Diário da queda, de Michel Laub, e  A Resistência, de Julián Fuks, Pereira opta pelo narrar a partir da falta, um tipo de uma genealogia do precário que subverte a ideia de chegar à lembrança de um passado soterrado e assume a necessidade do exercício da imaginação a partir dos espaços e objetos que o cerca.

Tanto para um leitor comum de literatura ou para um crítico/teórico, o enredo é simples e bem conhecido no universo de romances modernos. A odisséia que o personagem Antônio envereda revela um dia na vida de um indivíduo comum e todos os sentimentos e sensações que o atravessa. Vejamos. Nas condições de uma nova vida, agora como cadeirante, Antônio, aos quarenta anos, retorna à casa dos pais, e é nesse processo de retorno que conflitos enraizados tanto no passado mais próximo de Antônio, nos espaços do Rio de Janeiro, quanto nas pequenas tramas de sua infância e juventude na casa dos pais, vem à tona nessa jornada de travessia geográfica e existencial. O livro, narrado em terceira pessoa, se passa durante a viagem de barca entre o Centro do Rio de Janeiro e Niterói, município da região Metropolitana. Nisso, temos um exímio lugar de passagem, que é a transição Rio-Niterói pelo serviço de barcas, entremeado pelas construções de imagens de um Rio de Janeiro pela voz de um narrador que tudo sabe sobre a vida de Antônio.

Isso nos aproxima das máximas do romance moderno já em Virginia Woolf e James Joyce, em que o emprego da linguagem e a dinâmica da forma de narração tomam lugar de grandes enredos ou acontecimentos dominados por reviravoltas ou grandes atos na vida de um sujeito comum. Aqui, o leitor está prestes a lidar com o que vem de longe, a partir de uma transmissão precária e preenchida pelo vivido e pelo que foi imaginado como não sob a perspectiva de Antônio, mas de um narrador que constrói a sua vida: Antônio, um personagem negro, homossexual e cadeirante. A viagem pelo interior da personagem entregue pela voz desse narrador esmiúça uma outra possibilidade de vida, a partir das observações de mundo da personagem –  novamente, ainda que sob a voz de um narrador em terceira pessoa – e a coloca em confronto com as instituições políticas, sociais e familiares afastando a literatura de qualquer desinteresse das questões atravessam o mundo.
  
 O tempo vivido no curto espaço de travessia é tomado pelo hábito de parar e observar as coisas, olhando por detrás das pessoas a fim de especular a contrariedade do mundo. Se nos atentarmos ao mais recente livro do ensaísta e crítico literário James Wood, intitulado A coisa mais próxima da vida, o capítulo dois traz justamente esse aspecto marcante da literatura, que é o quanto a observação em si é observável. Wood sugere que temos na ficção um privilégio em ver como as pessoas se inventam e se constroem ficcionalmente. Nesse caso, trazendo essas reflexões para o âmbito da literatura de Carlos Eduardo Pereira, e mesmo para a ficção contemporânea de forma mais ampla, observar seriamente o mundo nesse momento de travessia é ir contra a arrogância do tempo e reinventar, a partir daquilo que perdemos o contato por mera falta de hábito ou preguiça, uma forma de olhar para as estruturas das experiências vividas. Esse é um dos muitos efeitos produzidos pela voz do narrador criado pelo autor de Enquanto os dentes: tornar a observação de Antônio observável nesse movimento de retorno.

Nesse panorama, o problema deixado para o leitor se dá pelas seguintes constatações: Primeiramente, temos um romance cuja vivência de mundo da personagem é dada sob a perspectiva de um outro narrador. Por conseguinte, qualquer fato elaborado em torno das expectativas frustradas, das opressões sofridas ou mesmos da vida na condição de sujeito à margem está nas mãos desse narrador, e isso perpassa a própria descrição de como Antônio observa o mundo. Por último, temos um romance de retorno à casa da infância, onde conflitos e experiências banais são retomados e reconstruídos antes mesmo dessa chegada. Ou seja, tudo se passa num certo entre-mundo, tanto por uma voz que não é a do personagem, quanto um lugar que nunca é alcançado em si.

Já no tocante à estrutura narrativa da obra, a via de mão dupla que pode permear a relação entre autor e obra é um ponto importante a ser analisado aqui, especificamente pela escolha de um narrador em terceira pessoa e sua relação com a vida do autor. A repetição quase excessiva do nome Antônio, ainda que seja um recurso estilístico muito bem empregado, pode ser lida, também, como um certo dispositivo que, não só pode criar um afastamento do leitor com uma figura ficcionalizada de “eu” do autor , mas principalmente possibilita uma chave de leitura para desviarmos do mundo particular ou de um certo localismo do Rio de Janeiro de Antônio. Há, dessa forma, não só um universo da personagem recriada pela visão desse narrador, mas também uma cidade mais universal re-criada, um pouco afastada de seu autor, como sabemos a partir de indícios como “Antônio não escreve, mas gosta de ler”(p. 42).

Longe de adentrarmos às discussões bem aprofundadas pelas correntes da teoria francesa acerca do autor, não podemos negligenciar o uso de tal recurso na narrativa em um contexto cuja experiência de que personagens preexistentes à obra também são elementos extra-textuais que podem ser inseridos na análise do texto literário dependendo da perspectiva crítica-teórica. Assim, o que nos chega é um mundo redescoberto e que nos é dado como um mistério, um desconhecido a ser especulado e contaminado pelo pouco que sabemos de Antônio.

Sem qualquer tentativa de abarcar ou esgotar a obra, seus recursos e suas teses filosóficas, umas das chaves de leitura dentre muitas outras possíveis é a da ideia de tempo em relação ao tema do retorno, levando, agora, em conta um ponto crucial da que a ficção proporciona: a memória não é alheia aos desejos de quem narra e muito menos desinteressada.

O passado, então, é reelaborado como uma imagem frágil, soterrado sob hábitos e eventos, uma espécie de promessa que não foi cumprida, mas que o presente pode reconhecer e retomar sob a forma de uma avalanche de lembranças involuntárias, como no excerto: “(...) muitas lembranças do colega de Turma coloca Antônio em lugares onde ele nem esteve” (p. 20). Há, nesse caso, um exercício de volta e de retorno que é ressignificado pela impossibilidade de um encontro com um tempo imutável, restando, assim, a necessidade de criar ou recriar vidas passadas e mesmo eventos e informações dos quais o narrador nunca terá acesso. Nesse sentido, o retorno, aqui, ainda sob a ideia de que estamos indo sempre para casa, só pode ser o retorno para um lar cujo acesso não é mais possível em sua totalidade ou que mesmo acesso só é possível a partir do imaginação e ficcionalização do que talvez tenha sido a infância, os lugares, as conversas e as relações estabelecidas, ou mesmo a vida num subúrbio carioca inventado:

Havia muitas brincadeiras de garoto, guerra de amêndoa, golzinho, pipa, taco, rolimã, cuspe a distância, e Antonio era um desastre em todas elas. Mas em corrida de chapinha ele se destacava. (...) A mãe guardava as tampinhas das garrafas de cerveja ou do refrigerante de domingo e Antonio separava as mais lisinhas, as que não tinham sido deformadas pelo abridor, para usar nas competições. (PEREIRA, 2018, p.13)


Na esteira de Marcel Proust, Pereira não entrega um texto que descreve uma vida como de fato foi, ou a sua infância nos detalhes ínfimos, assim como é a literatura em seu sentido mais bruto, mas uma vida lembrada, em que os hábitos mínimos rememorados, sem um senso de completude ou apreensão total, permitem o desdobramento mais profundo da infância nesse retorno ao lar. Daí as lembranças vem à cabeça de Antônio como relampejos cuja origem ou veracidade é parte do jogo consciente ou inconscientemente – não nos cabe afirmar tal pressuposto - lançado por Pereira. De forma um pouco truncada, assim como a memória opera, o passado remonta, antes de antigos conflitos ou relações mal resolvidas, objetos e espaços que dão lugares às pessoas que fazem parte da vida de Antônio:

Então combinou com a mãe de esconder a cadeira no porão da casa dela, sem o Comandante saber.
A mãe conheceu o marido no comecinho dos anos de 1970. Ela vem de uma cidade portuária, do subúrbio de uma cidade portuária, igual me tudo a quase todas elas, e o tempo nesse tipo de lugar vai numa velocidade diferente, e as notícias chegam do mar. (PEREIRA, 2018, p.11)


E é a partir dessa reflexão que o narrador começa a estabelecer conexões com o passado de Antônio, como, por exemplo, a maneira com que a mãe guardava as tampinhas de garrafa de cerveja ou refrigerante para encenar partidas de futebol com miniaturas de garrafa ou mesmo o episódio da cadeira de roda que o permite desenvolver a história da mãe.

Confiamos nas palavras do narrador dizer que Antônio enxerga o mundo por baixo, alinhando-se ao que há de menor e marginalizado pela sociedade em relação à condição de cadeirante. A narrativa desvela olhares preconceituosos de pessoas na rua, assim como as dificuldades materiais e geográficas enfrentadas pelo personagem em suas jornadas pelas ruas da cidade. Tudo é redescoberto à maneira de um flaneur reinventado, agora flanando e se movimentando pelas ruas da cidade a fim de experimentar o espetáculo das transformações urbanas sob a redefinição do funcionamento do mundo dada a nova condição de observar as transições em uma cadeira de roda.

A ideia de enxergar o mundo de outra maneira, como o belo ou alguma parte atrativa de uma cidade que pode ser visto sob uma perspectiva de barreiras e empecilhos para se locomover, pode ser visto como um empréstimo da vivência do autor, figura preexistente à obra, para a complexidade do romance. Assim como na vida de Antônio, a literatura tem esse poder de disparar um olhar de redefinição do mundo um certo tipo de leitor, possibilitando, assim, o texto literário como um reduto de mistérios no invólucro daquilo que se apresenta como mais banal, nos lembrando-nos de que em tudo há o inexplorado e a mínima coisa contém uma ponta de desconhecido, como afirma a personagem de J.M Coetzee, em Elizabeth Costello.

Durantes as poucas horas de travessia entre a cidade do Rio de Janeiro e Niterói, uma outra travessia é narrada no interior da personagem: os conflitos com a instituição familiar representada na figura autoritária do pai, a vida na marinha quando mais jovem, as questões acerca da homossexualidade dentro do recorte de um personagem negro na sociedade racista e patriarcal e a redescoberta do mundo e suas barreiras como cadeirante. O tempo flui de uma forma estranha para Antônio, como afirma o próprio narrador, e é por isso que o romance acontece. A história de Antônio é mais do que uma vida construída enquanto os dentes mordiam para aguentar o peso do mundo, mas uma trama de retorno que nem precisa chegar ao espaço físico da casa para rememorar a pungência e a sensação dos dentes rangendo.